sábado, 29 de novembro de 2008

Um texto antigo para recordar...

ABC no Céu

“Unidade Educacional Solon de Lucena/Subunidade Educacional Leonilla Marinho/Manaus, 26 de abril de 1975/Diretora: Dalva Pereira Vieira/ Professora: Helena Ferreira de Carvalho/Série: 1ª/Turma: A”. Nunca esqueci esse cabeçalho. Com breves variações, ele me acompanhou durante os quatro anos do meu primário.

Manaus não era tão grande e o Grupo Escolar Leonilla Marinho, uma escola pública modelo, era subordinado ao Solon de Lucena. Lembro com saudade do Grupo, como chamávamos carinhosamente o Leonilla. Jambo & Ruivão, Manda-Chuva, Leão da Montanha e outros personagens feitos de cartolina e pregados no isopor enfeitavam o saguão principal. A escola impecável era imagem da gestão da dona Dalva, a diretora. Não é surpresa para quem trabalha com educação: a escola é a cara de seu gestor. Dona Dalva controlava o Grupo com autoridade. Quando se ouvia sua voz, a palavra que vinha à mente era disciplina.

Era subsecretário ainda quando um dia recebi um recado. Minha secretária disse que a Samara havia ligado dizendo que a missa da professora Helena seria na segunda seguinte, na Igreja de Lourdes e que a dona Dalva estaria lá. Samara é uma das cinco filhas da professora Helena e a professora Helena é a professora do meu cabeçalho da 1ª série.

A última vez que falei com a professora Helena foi quando ela foi à Semed, justamente com a Samara, fazer uma visita de cortesia. Éramos dois orgulhosos. Eu, por apresentar aos que trabalham comigo a pessoa que me ensinou a ler, e ela, por ver um de seus “meninos” em uma função de extrema responsabilidade social. Há anos não a via, mas há presenças que mesmo na ausência se fazem fortes.

Em nossa memória afetiva há sempre um lugar para o que nos constitui, a despeito de distância geográfica ou temporal. O Grupo foi ampliado, perdeu o pátio, não tem mais a disciplina da dona Dalva, a merenda da Chiquinha e nem a Penélope Charmosa na parede. O antigo quadro-verde está órfão de sua maestrina. Sua régua de madeira de 50 cm era a batuta com a qual regia a entrada dos meninos no universo do ABC. A Balainha, que dançava com a Beth Diger nas festas juninas, já não cruza mais seus arcos coloridos no ar.

Fui à missa da professora Helena. A dona Dalva estava lá. O recado da Samara sobre sua presença foi uma forma de mobilizar a disciplina para que eu comparecesse. Nem precisava. Lá estavam várias ex-professoras do Grupo, entre elas a minha mãe, Helena Freire, e a professora Machadinho, além de ex-alunos. Ao dar o abraço silencioso nas filhas, eu chorei. Chorei porque percebi o quanto a professora Helena fez diferença em minha vida. Dei-me conta de que o maior desafio dos professores de hoje é se fazer presentes na memória afetiva de seus alunos para sempre, como a professora Helena Carvalho se faz na minha.

Do meu cabeçalho agora um nome se faz ausente. Bateu a campa do tempo da vida terrestre da minha professora. Mas o Grupo do céu está mais feliz, pois a mesma campa bateu para a entrada lá. Com suas fardinhas brancas e congas azuis impecáveis, os anjos fizeram fila e já foram para a sala. Certamente se levantaram e em voz uníssona, típica das crianças, reverenciaram: “Bom dia, professora Helena!” Ela deu bom-dia sorrindo, batuta à mão, e foi para o quadro ensiná-los a ler. Minha professora sabia fazer isso como ninguém.

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