quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A polêmica dos bebês anencéfalos

Este texto é muito significativo para se pensar sobre o direito da mãe em interromper a gravidez de um bebê diagnosticado com anencefalia. O pau está comendo. A Igreja Católica diz que é aborto. O Ministro do Supremo e relator da matéria, Marco Aurélio Melo, diz que a constituição deve proteger o cidadão brasileiro. A mãe é cidadã brasileira e o feto não. Portanto, ela teria o direito à interrupção sem que fosse crime. E aquela que quiser levar a gravidez até o fim, mesmo sabendo que o bebê vai morrer ao nascer, também pode. A questão é delicada e merece reflexões.

Cacilda foi protegida, Severina torturada
Eliane Brum, repórter especial de ÉPOCA, é co-diretora do documentário Uma História Severina, vencedor de mais de 20 prêmios nacionais e internacionais


Severina suportou mais de 30 horas de dores de parto consciente de que, ao final, teria não um berço, mas um caixão

Cacilda e Severina são mais semelhantes que diferentes. Ambas são brasileiras pobres, agricultoras, católicas. Cacilda, do interior de São Paulo; Severina, dos arredores do Recife. Ambas desejavam um filho. Ao engravidarem, comemoraram. Na ultra-sonografia, descobriram que seu bebê tinha uma malformação que o levaria à morte. Sofreram muito. Cacilda decidiu prosseguir com a gestação. Para Severina, tornou-se insuportável continuar gerando um feto que não viveria. É aqui que seus caminhos se separam. Não porque suas escolhas são diferentes. Mas porque o Estado protege Cacilda. E tortura Severina.

Entendo que determinar se a filha de Cacilda Galante Ferreira era ou não anencéfala faz diferença tanto para quem defende a interrupção da gestação nesses casos como para quem é contra. A questão permeou os dois dias do debate travado em audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal. Mas acho cruel que seja preciso discutir publicamente a grave anomalia da filha de Cacilda. As questões de Cacilda só deveriam interessar a ela. É porque Cacilda merece todo o nosso respeito que é triste assistir a seus sentimentos virarem peça de campanha religiosa. Sua relação com a filha, a decisão de levar a gestação até o fim, assim como o sentido que deu a esse um ano e oito meses de maternidade, pertencem apenas a ela. São íntimas, privadas, correspondem ao seu livre-arbítrio, à sua dignidade.

Não importa discutir as questões de Cacilda por uma razão objetiva: Cacilda não é objeto da ação que reinvidica o direito de interromper a gestação anencefálica. E não apenas porque sua filha, segundo afirmaram especialistas eminentes na audiência pública, não seja um caso de anencefalia. Mas porque, quando Cacilda acreditava que sua filha era anencéfala, sua decisão de levar a gestação até o fim foi respeitada. As questões de Cacilda só interessam a Cacilda porque ela sempre esteve amparada pela lei. Se a ação for aprovada pelo Supremo, mulheres como Cacilda continuarão protegidas pelo Estado.

O que importa, sim, é discutir as questões de Severina. A agricultora pernambucana Severina Maria Leôncio Ferreira não está protegida pela lei. Ao descobrir que carregava no ventre um feto condenado à morte e decidir que não levaria aquela gestação até o fim, Severina não encontrou amparo no Estado. Por não ter encontrado proteção, Severina foi torturada. Seu sofrimento fere o princípio constitucional da dignidade humana.

Seria ótimo que, assim como as de Cacilda, as questões de Severina só importassem a ela. É justamente esse direito – o de cada mulher decidir se faz sentido ou não prosseguir com a gestação, dentro do seu útero, de um feto com malformação letal em 100% dos casos – que o Supremo vai julgar. O que os 11 ministros vão dizer é se Severina merece o mesmo respeito que Cacilda.

Testemunhei a dor de Severina. Seu calvário foi contado no documentário Uma História Severina, co-dirigido por mim e produzido pela Imagens Livres, do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis). Em 20 de outubro de 2004, quando a liminar que permitia a interrupção da gestação de anencéfalos foi derrubada por 7 votos a 4, um dos ministros do Supremo disse: “Mas onde estão essas mulheres? Nós nem sabemos se elas existem”.

O documentário surgiu da indignação diante desse comentário que desconhecia não só a dor, mas a existência das mulheres severinas. Meu objetivo, ao tirar férias de ÉPOCA para realizá-lo, era mostrar não só que elas existiam, mas que as decisões da Justiça afetavam profundamente seus destinos. Eu queria contar o longo dia seguinte a que os ministros do Supremo não assistiriam.

Severina estava internada num hospital do Recife no momento em que, a mais de 2.000 quilômetros dali, em Brasília, os ministros derrubaram a liminar que permitia a interrupção da gravidez anencefálica. Ela dormiu, em 20 de outubro de 2004, preparada para interromper a gestação no dia seguinte. Quando amanheceu, foi colocada para fora com sua dor e sua barriga de quatro meses. Naquele exato instante, Severina foi desamparada pela Justiça.

Para ela e para seu marido, Rosivaldo, levar a gravidez até o fim era impossível. Eles não suportavam a idéia de que o feto dentro do ventre de Severina não viveria. Era tanto o seu sofrimento, que enfrentaram algo enorme para eles: o Judiciário. Pobres, analfabetos, iniciaram uma peregrinação judicial que só acabaria três meses depois. Foram empurrados de um canto a outro. Compraram uma pasta para guardar a papelada, mas não a decifravam. A tortura jurídica foi só a primeira violência.

Severina sabia explicar em detalhes a imagem da ultra-sonografia que revelou a anencefalia de seu bebê. Mas, no seu íntimo, mil dramas se passavam. Ela não conseguia imaginar como era a cabeça daquele filho. Nos três meses em que sua gravidez se prolongou, enquanto esperava uma decisão do juiz, Severina viveu vários dilemas. A cada enjôo ou sensação diferente, tinha esperança de que fosse o cérebro da criança se constituindo dentro dela. Depois, concluía: “Mas o médico disse que isso não acontece, né?”. Quando, um dia, botou para fora um vômito escuro, achou que era sangue. “Será que machuquei a cabeça do meu bebê?” Para ela, aquela falta na cabeça do seu filho só podia ser uma ferida. Aberta.

Quando, finalmente, Severina conseguiu licença para interromper a gestação, carregou sua barriga de sete meses pelas lojas do centro do Recife. Severina buscava uma roupinha com touca para cobrir a anomalia na cabeça do bebê. Ela não queria que ele fosse vítima da curiosidade pública no caixão. Mas Severina não encontrava. Era quente demais no verão pernambucano para que as lojas exibissem gorros. Severina precisava, então, explicar à balconista o porquê de um pedido tão exótico. E, assim, não bastasse ter de comprar uma roupa para o enterro do filho que ainda carregava no ventre, Severina ficava, a cada loja, mais e mais aflita. Sem touca, ela não poderia proteger seu filho dos olhos do mundo.

A próxima estação do seu calvário foi a rede pública de saúde. Severina foi empurrada de um hospital a outro, com a autorização judicial na mão. “Não há vagas”, “meus colegas são contra o aborto”, “tenha paciência”. Com o aparelho na barriga de Severina, um dos médicos disse, a voz se impondo ao som do coração do feto batendo: “Olha como o coração destes fetos bate. Eles têm coração, o que não têm é cérebro”.

Tudo isso ela viveu. Quando conseguiu ser internada, exausta, o pior estava só começando. Como a Justiça tardou em decidir, aos sete meses de gestação Severina teve de enfrentar um parto induzido. Suportou mais de 30 horas de trabalho de parto. Estendia sobre a cama a roupinha do funeral do bebê, comprada por mim num shopping depois da sua internação. Colocava um sapatinho branco do lado do outro, os acariciava e chorava em silêncio.

Quando as dores pioraram, ela não conseguia mais ficar parada. Andava e contorcia-se no corredor da maternidade. Por ela, passavam mães orgulhosas com seus recém-nascidos no colo. Severina olhava para aquelas cenas com um desespero tão pungente que era difícil suportar seu olhar. Para seu filho, haveria não um berço, mas um caixão.

Então Severina arrastava-se para o quarto em busca do álbum de fotografias de seu único filho, Valmir, de 4 anos. Primeiro abraçava o pequeno álbum. Depois acariciava cada foto demoradamente, cada uma delas uma prova de que ela podia gerar um filho vivo.

Até o momento da internação, ela repetia: “Eu não quero ver”. Severina temia ver a cabeça do filho. Quando as dores foram apertando, porém, a cabeça do filho tornou-se um tormento. “Como será a cabecinha do meu filho? Eu só penso nisso.” À noite, sonhou que o marido, Rosivaldo, aparecia no hospital com a cabeça raspada. Ela dizia: “Você está muito feio, vá embora do hospital”.

Agora Severina precisava ver. Tinha de ter certeza. Precisava ver o que não existia, porque naquele momento era o que não existia, a ausência, a falta do cérebro, que dava sentido à dor que a arrebentava. Seu filho não tinha cérebro, seu filho não poderia viver. Isso ela podia entender. Severina pariu. E quando, primeiro a enfermeira, depois a psicóloga, em seguida a sogra, perguntaram a ela se queria ver “todo” o filho, ela disse: “Sim”.

Severina viu o filho. E chorou muito por ele. E ali, deitada na mesa de parto, pegou meu celular emprestado para ligar para Rosivaldo. “Nosso filho está morto.” E pediu por Valmir, o filho vivo. Era 12 de janeiro de 2005. O bebê de Severina e Rosivaldo não tem certidão de nascimento, só de óbito.

Essa foi a tortura severina. A pergunta que se impõe agora ao Supremo é se mulheres como Severina continuarão condenadas a esse horror. Ou, como Cacilda, terão o direito de escolher como lidar com a dor de ter um feto condenado à morte dentro do seu útero.

Quando o documentário ficou pronto, Severina e Rosivaldo foram os primeiros a vê-lo. Não quiseram mudar nada. Rosivaldo pediu apenas para acrescentar a frase que encerra o filme: “Eu acho que, quando a pessoa é humana e vê uma fita dessa, pode ser juiz, pode ser o que for, tem de sentir alguma coisa”.

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