sábado, 18 de outubro de 2008

Do fundo do baú de novo

sMais um texto dos antigos. Um meio fora do meu estilo, mas é meu. Eu juro.

O DIA DA CAÇA

Aproveitou que tinha que pagar a casa no banco que ficava no shopping e resolveu passear. Entrou pela porta próximo à papelaria e, pasmo, se deu conta do quanto é amargo ao ver duas mulheres se espocando de rir, quase às lágrimas de cartões do Garfield para todas as ocasiões. Como poderiam rir daquilo? Tudo bem, vá lá que se ria de cartões engraçados, mas daquele jeito ao frouxo?! Aproximou-se para confirmar as suspeitas e confirmou: era amargo mesmo. Saiu da papelaria e olhou no relógio. Tinha que buscar a mulher na casa da mãe. Dela, lógico.

Passou em frente à Drugstore, uma drograria de importados, e percebeu uma gorda vomitando ódio e humilhação em cima da vendedora que tinha falado bruti, dissilabicamente e sem sotaque, para o desodorante Brut, que ela, a gorda, usava. Talvez o dela fosse bruti mesmo. Cheirou alguns perfumes franceses de 2a. linha (alternativos, para os politicamente corretos), imitações que traziam na caixa o nome dos imitados. Não perdeu a oportunidade de perfumar-se com as amostras até os cotovelos e saber que Eternally é o primo pobre do Eternity. Ao ver a cena, ele pensou em rir, mas lembrou que na infância usou calção Adibas para fazer educação física e mudou de idéia e de rumo.

Loja de discos. Parou e olhou o relógio: tinha que apanhar a mulher. Tinha tempo. “Pois não, posso ajudá-lo?”, perguntou a vendedora, mal sabendo que ele detestava ser cerceado em sua liberdade de olhar as coisas sem ninguém fungando em seu cangote, vendedor atrás de comissão, urubu atrás da carniça. Ignorou e disse, dispensando-a: “Só estou olhando”, frase clássica de quem detesta hienas sedentas por comissões. Percorreu as promoções, olhando CD a CD. Teco-teco-teco-truuuu. (puxa CD, puxa CD, puxa CD, empurra os CD’s de volta). Tinha uns a nove paus. Comprou três. Música clássica. Não gostava de música clássica, mas pelo menos engordara sua coleção de CD’s (o número de CD’s na coleção é um dos parâmetros do nível social entre os pequenos burgueses). Saiu, não sem antes dar uma olhadinha para vendedora com um ar triunfante de quem escolheu, pegou, pagou, enfim, fez tudo sozinho, sem ajuda.

Olhou o relógio. Tinha que recolher a esposa. Tinha tempo. Parou em frente à loja de calçados. Viu um doquissaide beleza. Viu também um vendedor vindo. Fuzilou: “Só estou olhando”. Viu o preço. Pensou no aparelho de ar-condicionado do quarto que precisava consertar e nas peças do carros para pagar. Esqueceu o doqui. Podia comprar um Le Chaval na Riachuelo, a prazo, ou um Caribu, hecho en Venezuela, nas Lojas Americanas, parcelado em dez vezes. Resolveu descer. A escada rolante estava subindo. Teve que andar até o outro lado para descer.

Parou na banca. Aproveitou que a mulher não estava ali (pois tinha que pegá-la em breve), olhou quem era a capa de Playboy, VIP, Sexy, Newsweek e Time. Tinha que disfarçar. Com elegância poliglota, lógico. Riu de revistas como Gula, para glutões, Fluir para garotões. Percebeu que uma gorda ria da Info, a revista sobre informática (seu hobby) que ele estava folheando. Era a gorda da drogaria. Sem perceberm, se vingara. Olhou o relógio. Tinha que catar a patroa. Desceu as escadas. A de descida não estava rolante. Resmungou algo e desceu. Um garotão riu e disse: “que coroa mais boko-moko, meu!”. Vingança dos garotões.

Fixou os olhos, como que encantado, num som PIONEER NSX HIGH POWER 2000 MPO WITH BBE. Na noite anterior tinha sonhado com um som assim. Tinha quase certeza que era um PIONEER NSX HIGH POWER 2000 MPO WITH BBE. Chegou tão perto do vidro que fez bafinho. Recuou. Lembrou das peças do carro. Tinha que continuar com seu CD player que, para abrir, precisa usar uma caneta para puxar a gaveta. Olhou o relógio. Tinha que pegar a esposa. Tinha tempo. Tinha que pagar a casa no banco. Fora ali para isso.

Entrou no banco, entrou na fila, entrou bem. Tinha um só caixa para uma fila de 25 pessoas fora os velhinhos e três caixas para os clientes especiais. Não se sentiu especial. Ficou deprimido. O cara da frente falou: “É um desrespeito!”, a mulher de trás (já havia gente atrás para seu consolo) disse: “Vou à gerência!”. “Isso!”, pensou, voltando-se para solidarizar-se com a mulher. Era a gorda. Passou a gostar da gorda. Começou a rolar um sentimento. Olhou o relógio. Tinha que buscar a esposa na casa da sogra com hora marcada. Já não tinha tanto tempo assim. “Próximo”, gritou a caixa, não lhe tratando nem um pouco como o próximo do preceito cristão. Pagou. Saiu. Mas antes, olhou um a um os que estavam na fila como quem dizia: “Fiquem aí que eu, o bom, já vou, galera!”. Apenas aquele momento perverso de que somos acometidos de vez em quando naquele sadismo de fila. Olhou o relógio. O tempo estava escasso. Tinha que pegar a esposa.

Ia entrar na livraria, lembrou-se do ar-condicionado. Deu meia-volta. Devia subir e pegar o carro no estacionamento. A única escada rolante que rolava agora estava descendo. Lusitanamente descendo. Resmungou algo e subiu. Olhou de novo a garota da capa, tranqüilo por saber que seu primo já tinha comprado. Ele, o primo, não perdia uma.

Olhou o relógio. Pensou em fazer um lanche. Uma coxinha e uma coca. Olhou o relógio. Pensou: “Não vai dar. Não vou deixar meu amorzinho esperando. Tenho consideração com minha general!”. Ficou orgulhoso do amor que nutria por sua cara-metade, por seu outro eu.

Caminhou para saída. Olhou o relógio. Tava quase na hora. Tinha que pegar a esposa. Abriu a porta do shopping. Entendeu, na pele, o conceito abstrato de choque térmico das aulas de química. O bafo quente de fora e frio polar de dentro brigavam numa pororoca invisível. Os óculos embaçaram. Ficou com medo que a boca entortasse, igual a do Ayrton Senna. O carro estava mais quente que o sol no verão. Suou. Ligou o ar-condicionado do carro. Mas não gelou. Estava sem gás. Tinha de escolher: ou dirigia ou dormia no friozinho. Preferiu dormir. Olhou o relógio. Estava na hora. Saiu do shopping.

Chegou na casa da sogra. Buzinou, assobiou o som característico (cada casal tem seu código assobiado). Ninguém. Surge Paula Toller, a empregada (ela nasceu na época do New Wave, daí o nome), que lhe vê e diz: “Ah, é senhor... Ela saiu agorinha, agorinha. Disse pro senhor esperar”. Lembrou da coxinha.

Esperou. Esperou. Esperou. E então, sem opção alguma, esperou ainda mais. A esposa, que ele tinha que apanhar, chegou. Abraçou-lhe o pescoço e beijou-lhe. Parou. Afastou-se. Perguntou: “De quem é esse perfume? E pra quem são esses CD’s de música clássica que eu sei que tu não gostas? Tu tens outra!!”, decretou. Partiu como uma louca para cima dele que, sem poder explicar, correu em direção ao carro. Quando estava a caminho, com a esposa, a mãe, o pequinês neurótico, todos correndo atrás e latindo, ouviu o barulho de um carro batendo em outro. “Só pode ser no meu!”, pensou para completar. Era. A motorista da Brasília 79 perdera a direção e entrara no dele. Literal e metaforicamente. Parecia machucada. Que dia! Ainda teve que socorrer a gorda.

20 de dezembro de 2003

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