sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Do fundo do baú

Estou revisitando alguns textos antigos. Este, escrito em julho de 2002, fala como amor e educação são parecidos. Espero que gostem.

Amor e Educação: dimensões compartilhadas

Durante um curso chamado “Educação, Comunicação e Tecnologia”, a turma e eu levantamos alguns temas que são sempre recorrentes quando se discute educação. Foram seis temas que iam e vinham durante o curso. O interessante da coisa toda : esses temas ou dimensões, me parece, podem ser considerados também no âmbito do amor.

É interessante notar como o processo educacional, cheio de apaixonantes momentos, pode nos ensinar a pensar no amor e nas paixões, responsáveis pela educação de nosso coração para a vida. Ou talvez seja o contrário: as paixões e o amor nos ajudam a entender algumas dimensões envolvidas no processo pedagógico. Bom, na verdade há uma certa sobreposição entre o processo educacional e o processamento afetivo. Se você é professor e amou intensamente entenderá esse texto mais facilmente. Mas vou tentar explicar melhor a idéia e ofereço essa explicação a meus alunos e aos meus amores pelas partes que lhes cabem.

O primeiro item é o planejamento. Em qualquer situação o planejamento é essencial. Concordamos que o planejamento deve ser flexível a ponto de poder responder e adequar-se às demandas contingentes, ao não previsto. Não se pode desconsiderar o dinamismo envolvido na questão. Concordamos igualmente quesituações em que nós até não planejamos e as coisas fluem muito bem, mas que esses casos são exceção à regra. São casos. São casos.

Assim, manter um planejamento rígido e fixo, sem abertura para as contingências, pode levar à atrofia pedagógica. Ou ao engasgo amoroso. Para poder planejar, no entanto, é preciso definir alguns parâmetros a respeito do que se quer enquanto professor, sobre o que se pretende de nossos alunos, sobre o que se entende por educação. E também sobre o amor, a relação e as expectativas em comum. Nada rígido. Bem, quase nada... São somente princípios. Princípios que nortearão nossas atitudes político-pedagógicas e, claro, afetivas.

Definir parâmetros e postular princípios são ações que ajudam a nos colocar no rumo norte. Aliás, decidir se queremos o rumo norte faz parte também desse próprio processo de definição. É preciso decidir sempre. A decisão é tão constitutiva de nossas vidas que esquecemos que a exercemos 24 horas por dia. Que horas acordar? O que tomar no café? Que roupa vestir? O quero fazer com minha sala de aula? Corto ou não corto o cabelo? O que meu aluno deseja? Qual perfume uso? Qual meu conceito de educação? Ligo ou não ligo para ela? Decisões. Políticas e pedagógicas na escola. Afetivas e sentimentais no amor. Decidir, no entanto, envolve não aceitar decisões prontas e postas por outros, decisões mcdonaldizadas, por assim dizer. É necessário ter uma certa incredulidade em relação ao que vem pronto. E isso, de pronto, nos leva ao terceiro ponto.

O problema de qualquer receita é que ela esquece a singularidade. A receita é uma grande abstração totalizante. É uma metanarrativa que se como sendo capaz de explicar e dar conta de todas as situações. Se funcionou ali, que garantias teremos quefuncionar aqui? Até porqueaqui” e “alisão palavras diferentes, como também são diferentes os contextos de implementação. Tudo bem que há similaridades que podem ser utilizadas como parâmetros, generalizações que podem ser úteis naquela hora de cima em que é preciso definir algumas cositas. Mas é preciso ser antropofágico (no sentido modernista) com as idéias externas: comê-las, degluti-las e reinventá-las, expurgando o que pode ser nocivo. Não é porque todo mundo faz assim que eu tenho que fazer também. Não deve haver essa relação direta, simplista e simplória. Posso até fazer o que os outros estão fazendo, mas me permita conhecer primeiro para eu poder então avaliar e decidir se dá, se rola. Por isso falo de incredulidade e não de ceticismo. Enquanto a primeiro permite a dúvida, o segundo abdica de perguntar. Há uma diferença enorme. Que relação pedagógica se sustenta sem o exercício da dúvida permanente? Que relação afetiva se sustenta na crença de uma certeza absoluta? Ambas são, a meu ver, meros jogos de faz-de-conta que mais cedo ou mais tarde arrebentam e nos arrebentam , enquanto educadores e enquanto amantes. É imperativo duvidar permanentemente. E antropofagizar as receitas alheias. Para isso, temos de ter instrumental, ter as ferramentas que nos permitam melhor trabalhar o real.

Sem instrumentos e conhecimento nem o melhor dos médico salva vidas. Só se ele for o McGyver (pesquisem, jovens!). Como poderá um professor planejar e tomar decisões, ser incrédulo aos dados que alguém lhe impõem, duvidar da dadidade de um dado, sem que ele conheça minimamente os fatos com os quais lida, sem que tenha qualificação profissional? Como pode alguém que ama decidir o que quer (baseado em expectativas e planos) e não aceitar modelos de amores, como as cartas dos livros da Ediouro, sem que tenha amado e vivido intensamente amores, novos e diferentes? A qualificação continuada do profissional da educação é imprescindível para a educação. É necessário começar do zero, sem experiência, de certo, como em todo começo. Mas é igualmente preciso buscar mais e não parar nunca, como as águas do Rio Negro que correm incansáveis. Amar é imprescindível para o amor. Nãopara parar . Mais do que perder o bonde da história, quando paramos somos atropelados por ele. É através da qualificação e do amor contínuo e continuado que se acessa a informação sobre o fenômeno imediato e se pode decidir que informação é ou não significativa para nosso aluno. Ou para nossa vida afetiva.

Qualificar a informação se apresenta, assim, como o quinto ponto. A escola não se sustenta mais no paradigma da transmissão de informação. Informação aos montes, flanando sobre nossas cabeças. Basta esticar a mão e pegar. A questão agora é aprender a processar essas informações soltas, interligá-las, achar o movimento de relação e produzir informações novas. Dessa forma, da reprodução se passa à produção. Esse agir sobre a informação é complementar ao qualificar. E é, sem dúvida, um agir sempre provisório, que deve ser sempre renovado, tendo em vista a citada dinâmica dos fatos sociais e afetivos. Se parar a informação, o fato, no tempo e no espaço, ela fatalmente caducará, ficará chata e obsoleta. Tornar-se-á anacrônica, dispensável e não-significativa. Se se perder o tempo certo, o timing desse ajuste permanentemente necessário, se perde irreversivelmente o fato enquanto objeto de prazer, enquanto elemento constitutivo de qualquer relação. Pedagógica ou afetiva. é preciso renascer, pois se se perde o prazer é preciso reconhecer que haverá um luto a ser curtido, para que haja nova gênese.

E é o prazer a última de nossas dimensões. Nossa escola está carente de prazer, de paixão. Nosso aluno vai arrastado para a sala de aula, pois não absolutamente nenhuma significação no ato de estar em um lugar que não lhe proporciona desejo. O simples desejo de estar ali e fazer parte. O prazer de problematizar suas questões fica quase sempre de fora. E sem prazer nãogozo, sem gozo nãorealização subjetiva, dizia o velho Freud.

Nós, professores, fazemos questão muitas vezes de funcionar como castradores do prazer daqueles que deveríamos seduzir, fazer delirar a ponto de caírem extasiados, suspirando em falsete, sem fôlego e com arfadas, clamando por água ou qualquer líquido que lhes minimize a hipoglicemia causada pelo esforço da prática do gozo gozado. Que relação sobrevive sem se querer estar por perto física ou mentalmente? Mais além: que relação se sustenta sem que haja a vontade de querer se sentir incluído, dentro mesmo da relação, vivê-la intensamente? Que relação pode ser produtiva e significativa quando a indiferença impera, quando a razão de ser e estar fenece? O aluno evadido é um sintoma de falha na missão do prazer contínuo. O amor evadido também.

Resumindo: devemos planejar de forma plástica e flexível. Essa flexibilidade, no entanto, deverá levar em conta (porque nunca dará conta) os limites estabelecidos nos princípios e parâmetros valorativos, filosóficos ou afetivos que regem a situação. É preciso ter cuidado para não tensioná-los a ponto de uma ruptura irreversível, que force um recomeço, num desperdício de investimento seja de que natureza for. Para isso se faz necessário ter acesso às informações. de posse delas, no momento certo, os agentes do jogo (pedagógico ou amoroso) podem redimensionar a situação, agindo sobre essa informação. Se houver a possibilidade da ação, certamente haverá a produção de informações novas, haverá a feitura de situações não pensadas antes, que podem até surpreender seus próprios agentes e adjacentes. Mas tudo isso não vale nada se se perder o timing ou se não houver mais prazer compartilhado. O prazer é duplo. Tem de ser duplo. Em sendo individual, o outro se vai, se esvai. Revolta-se e não volta.

É essa a complexidade da educação. É essa a singularidade do amor. Elas não são atividades para os biqueiros, mas para profissionais, para aqueles que têm no sangue a paixão que move, que desloca, que movimenta.

Caso você tenha um problema em sua sala de aula ou em um relacionamento afetivo, procure os sintomas, verifique, indague. Muito provavelmente uma dessas dimensões está capenga, está falhando e pode num piscar de olhos botar tudo a perder. O diagnóstico tem de ser rápido e preciso, como os dedos ao piano em uma peça de Bach. Cazuzamente, o tempo não pára. Ele é inquieto. As coisas correm. E nos deixam para trás. Não se pode perder a noção de que tudo isso está interligado. Que o menor movimento em uma dessas questões afeta seu todo. Elas são solidárias entre si.

E finalizo, então, trazendo o princípio de solidariedade proposto por Che Guevara, que endureceu, mas sabiamente jamais perdeu a ternura: “Toda lágrima que se derramar no mundo também é minha lágrima; toda ferida que esteja num corpo qualquer, no mais longínquo continente, está na minha pele e toda opressão que uma pessoa humana, na última caverna do mundo, possa sofrer é minha opressão”. Assim é a teia que une as dimensões pedagógicas. Assim é a tessitura das dimensões afetivas. Nãopara segmentar sem ensangüentar. Simplesmente não dá.


08 de julho de 2002

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