segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Espelho, espelho meu...

O que mais impressionou Elaine não era o fato de Eupídio ser carinhoso e atencioso com ela. Claro que isso também contava. Mas ela se interessou de vez por ele quando percebeu que ele deixava sempre o último pedaço, a última cereja do bolo, a última almondega, o último gole de coca-cola para ela. Elaine tinha uma teoria: enquanto o outro lhe cede o último pedaço de comida o amor ainda existe. Abrir mão de comida era para ela a prova suprema de que a felicidade do outro é prioridade, ainda que a custo de nossa fome. Ela chamava isso de jujum do amor.

Na verdade, Elaine era uma mulher de teorias. Defendia uma outra que chamava de banquete dos leões. Dizia que quando o casal não mais protegesse um ao outro, mas, ao contrário, quando um cônjuge começasse a oferecer o outro de bandeja para ser objeto de chacota da sua família, os leões da teoria, o amor já estava dando sinais que partira.

Eupídio, por sua vez, era um cara tranqüilo. Levava as teorias da mulher na boa, como se fosse um jogo argumentativo no qual entrava por diversão, nunca a sério. Deixava a última porção sempre para ela porque era um cavalheiro, numa época em que isso soa démodé. Jamais permitia que ela fosse objeto dos papos ácidos de sua família, nos almoços de domingo, porque a amava. Era atencioso porque sabia que tudo que uma mulher precisa é de atenção, alguém que a ouça. Mulheres são movidas a silêncio dos outros.

Um dia, Elaine colocou na cabeça que Eupídio não gostava mais dela. Do nada. Ele continuava deixando a última colherada do mousse de cupuaçu para ela. Nunca havia deixado que ninguém da família dele falasse sequer uma vírgula a criticando, a despeito de suas infinitas manias que se sobressaiam a olhos vistos e de seu ciúme shakespeareano. Sempre que ela falava ele não só ouvia como escutava. Mas ela encasquetou. Na hora do café da manhã.

– Mas, Laine, por que...
– Você não gosta mais de mim! Pára de negar! Ontem, no aniversário da tia Dorzinha, meus irmãos e meus primos me fizeram ver isso. Você não cuida de mim, não me dá mais atenção. Eu falo e você já não me ouve. Eu estava cega e eles me trouxeram a luz.
– Mas, Laine. De onde você...
– Deve ter outra. Com certeza tem outra. Nem abre nem mais a porta do carro pra mim...
– A porta é automática, amor, abre com o alarme.
– Sem desculpa, Eupídio Augusto. Sem desculpa. E não gosto de ser interrompida! Pra mim chega!

Elaine raspou o pote de manteiga, passou no último pão de queijo da cestinha, tomou o gole de suco que restava na caixinha e saiu batendo a porta. Largou Eupídio, esse insensível.

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